sexta-feira, janeiro 09, 2015

Quando morreu a minha avó




 
Muita gente boa, por estes dias, tem andado por aí a perguntar a propósito dos assassinatos no Charlie Hebdo:

− Por que é que, ó gentes, nunca se indignaram, manifestaram e fizeram semelhante escarcéu com outros massacres, que estão sempre a acontecer, como no Iraque, na Nigéria ou no Paquistão?

E o Ruanda, que dizem? Aquilo é que foi um massacre sem tamanho, um genocídio, uma coisa brava.
Alguma vez se lembraram de fazer, e exibir, papelinhos a diz “Eu sou tutsi”?

Estas pertinentes perguntas remetem-me para uma outra, de cariz mais pessoal, mas que me atormenta há anos:

− Por que é que, quando morreu a minha avó, eu fiquei muito mais triste e sentida que quando morreu a avó da minha vizinha, também ela uma muito boa senhora?

segunda-feira, janeiro 05, 2015

Para o povo













 
 
 
 
 
Títulos lidos (só) no sábado:

 - Portugal perdeu mais de mil jornalistas desde 2007 (RR)

 - 52 mil idosos perderam complemento solidário (Público)

 - Em seis anos mais de 10 mil enfermeiros pediram para emigrar (Público)

 - Mais de 1700 crianças perderam o abono de família, (já não sei onde).

Não percebi logo que memória tudo isto me convocava, mas depois lembrei − o almirante Pinheiro de Azevedo, Primeiro-Ministro de Portugal nos idos de 1975, a dizer, certa vez, no calor do PREC:

 Bardamerda para o povo

sexta-feira, janeiro 02, 2015

(Re) Começo















 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
“Flaubert ensina-nos a olhar para a verdade e não temer as suas consequências; ensina-nos, como Montaigne, a dormir na almofada da dúvida; ensina-nos a não nos aproximarmos de um livro em busca de pílulas morais ou sociais: a literatura não é uma farmacopeia; ensina a superioridade da Verdade, da Beleza, do Sentimento e do Estilo. E se estudarmos a sua vida privada, ensina a coragem, o estoicismo, a amizade; a importância da inteligência, do ceticismo e da imaginação; a palermice do patriotismo barato; a virtude de ser capaz de ficar sozinho no quarto; o ódio à hipocrisia; a desconfiança nas teorias; a necessidade de falar com simplicidade.”

Julian Barnes
“O Papagaio de Flaubert”
Quetzal

 
Tudo isso e o mais que a vida trouxer neste ano ainda novinho em folha.
Começo ou recomeço.
Aprender ou reaprender.

 
Imagem roubada ao blogue SEGUNDA LÍNGUA, num post intitulado “Portas onde nos apetece estar”

terça-feira, dezembro 30, 2014

Votos 2015


 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Que a barcaça finalmente naufrague com toda a tralha que tem dentro.

Para todos os que por aqui passam desejo, exactamente, o mesmo que para mim própria.

Feliz 2015
 
 

terça-feira, dezembro 23, 2014

Natal 2014


 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Parece que é o tempo de sentir muito Amor no coração.

Mas, por que não no corpo todo?

FELIZ  NATAL.
 
Nota: Não me foi possível descobrir, com absoluta certeza, o nome do autor da foto

segunda-feira, dezembro 22, 2014

Eles na tv













 
 
Para as crianças deve ter sido assustador; para todos os outros foi apenas grotesco.
Dois bonecos, macho e fêmea, perfilados em cenário natalício, cumprindo uma formalidade, foi o que vi.
Actores canastrões sem talento, exibiam uma ferocidade controlada e impotente,  nunca conseguindo disfarçar o mal-estar que os tomou.
Assim vi Aníbal e Maria Cavaco Silva, a meio corpo, no mui difícil dia em que se sentiram obrigados a aparecer na tv para desejar Boas Festas a um país que, eles sabem, nutre por eles um profundo desprezo.
Faço parte desse país, como é óbvio.
Nota:Este episódio pícaro da vida portuguesa poder ser vista na página oficial da Presidência da República

 

quarta-feira, dezembro 17, 2014

A dois tempos















 
 
 
 
 
 
A imagem acima, colhida ao acaso, pertence a um primeiro tempo.

Nele, os portugueses usam as redes sociais para postar gatinhos, bebés, paisagens de sonho, arquitectura ora de sonho ora de pesadelo, anjinhos papudos e, sobretudo, “frases inspiradoras” de “pessoas inspiradoras” - Osho, Buda, Dalai Lama, Brian Weiss, Gandhi, Paulo Coelho, e autores desconhecidos dos quais a Chiado Editora tem um armazém cheio.

São pessoas que dizem coisas lindas sobre os enganos em que andamos enredados, a beleza da vida simples, as virtudes da clareza duma mente limpa, o desapego, e a importância do amor ao próximo; sobretudo isso, a importância do amor ao próximo.

Talvez por artes dum qualquer génio do mal, que também anda à solta nas redes sociais, esses mesmos portugueses, tão inspirados por seres inspiradores, num segundo tempo, mal se escreve a palavra “Sócrates”, dedicam-se ao comentário:

 
Qual preso, qual quê, já devia era estar morto. Morto? Devia estar a arder no inferno? No inferno? Nunca devia era ter nascido.

Não se sabe? É claro que sabe! Corrupto! Ladrão! Crápula!

Qual direito a defender-se, qual carapuça! Não tem direito a nada, nem sequer ao ar que respira! Na masmorra, na masmorra é que devia estar e para sempre. E ainda digo mais – tudo o que ele tem devia ser confiscado.

Inocente? Você está mas é maluca, sua socratista de me$&@!

“Senhor, abençoa nossa semana e abra nossos corações para o amor e a caridade”.

quinta-feira, dezembro 11, 2014

segunda-feira, dezembro 08, 2014

Beleza radical



















Dei por ela pela primeira vez no Bloco de Esquerda, depois vi-a a apoiar não sei o quê do Mário Soares e na 6ª feira vi-a no Expresso da Meia-Noite a fazer descarada campanha eleitoral por um tal partido ou movimento, nem sei, chamado “Juntos Podemos”. Falo de Joana Amaral Dias.

Este movimento/partido não sei o que propõe mas, pelo menos o nome vem com cheiro a castelhano, e a “assembleia cidadã” que convoca também me cheira a comida requentada. Posso estar de mal com os odores mas tudo nesta iniciativa política me cheira a oportunismo mal cozinhado.

Ao contrário, oportunismo muito bem cozinhado parece-me o da Joana.

Temendo que me chamem invejosa e maldizente, nem vou falar da sua postura de boneca arrogante e sabichona, (ó p’ra mim que estou aqui, que sou tão gira e tão inteligente). Não, não vou falar, até porque, na verdade, ela é gira e inteligente. Lamentavelmente, e usando o imenso tempo de antena posto ao seu dispor, coloca beleza, inteligência e feminilidade ao serviço da inconsequência política.

E o seu discurso radical não vai bem com tudo o resto. Quem poderá levá-la a sério?

Sempre acreditei que mais mulheres fazem falta na política, e que a podem fazer tão bem, ou melhor, que boa parte dos os homens.
O que me chateia é quando, como no exemplo exposto, a fazem igualmente mal.

Nota : o referido Expresso da Meia-Noite pode ser visto aqui.

quinta-feira, dezembro 04, 2014

Fechar a boca














 
 
 
 
 
 
 
Sócrates escreve cartas.

Sócrates não quer ser esquecido numa cela da prisão de Évora e está zangado, muito zangado.

Sócrates sente-se encurralado, começa a estar confuso, a disparar em todas as direcções, e começa a mostrar falta daquela frieza tão necessária quando se enfrenta um adversário poderoso mas difuso.

Esta sua última carta, enviada ao Diário de Notícias, mais parece um lamento/acusação. E é incoerente.
É que, ao perguntar “quem nos guarda dos guardas?”, por exemplo, está implicitamente, e talvez sem que o perceba, a assumir o falhanço da sua acção governativa.

Sócrates não é um preso comum; ele foi primeiro-ministro durante seis anos, e só deixou de o ser há três. Tudo aquilo de que acusa a justiça, sendo ou não verdadeiro, é também culpa sua e das políticas que desenvolveu para o sector.

Há pessoas que, mesmo quando tudo o aconselha, não conseguem fechar a boca.
Isto pode correr mal.

segunda-feira, dezembro 01, 2014

A longa marcha













 
 
António Costa é, finalmente, secretário-geral do PS.

Não foi pequena a caminhada, e respectiva dose de esforço, que António José Seguro lhe impôs para aqui chegar − quase meio ano nos separa das europeias que desencadearam o processo que ontem terminou.

Os termos ditados por Seguro foram à sua medida – grandiosos nos tempos, mesquinhos nos objetivos. Costa aceitou prazos absurdos, percorreu concelhias e distritais, debateu na televisão e encaixou ataques pessoais de baixo nível, mobilizou militantes e simpatizantes para as primárias que ganhou “sem espinhas”.

Depois, julgo que houve directas e, a uma semana do congresso, cai-lhe no colo a pior notícia possível − a prisão de José Sócrates. Se estremeceu, não demos por nada, antes aproveitou a situação para dar provas de grande acuidade política e capacidade de liderança.

Por fim, agarrou um congresso que ameaçava decorrer com o entusiasmo dum velório.

 O seu discurso de encerramento mostrou um líder forte a fazer uma inusitada viragem à esquerda.
Por uma (boa e inesperada) vez, foi um discurso que alguém como eu gosta de ouvir. Aguardemos então pela acção, que é o que, verdadeiramente, conta.

Em breve António Costa começará o circuito da carne assada, fazendo duas voltas ao país, enxotando o fantasma de Sócrates, que quererá assombrá-lo ao virar de cada esquina, e tentando passar uma mensagem que agrade à esquerda sem assustar o centro.

Habituado que está à “Quadratura do Círculo”, talvez consiga.
Se se fizer eleger primeiro-ministro, terá passado um ano e meio de grandes trabalhos.

Simpatizo sempre com gente que luta por objectivos no meio das muitas dificuldades que lhe vão sendo plantadas no caminho.

Hoje, António Costa merece o meu respeito.
Até agora, nesta caminhada, nada para ele foi fácil.

quinta-feira, novembro 27, 2014

A mim chateiam-me, pá!




Gosto da diversidade, mas detesto os que têm que ser sempre diferentes.

Gosto da crítica, mas detesto que ela me apareça (mal) embrulhada em pensamento filosófico.

Gosto de alguma ambição, mas detesto ambiciosos que gostam tanto de subir como de puxar tudo o resto para baixo.

Hoje, o “cante” alentejano foi classificado (e não “elevado”, como dizem os ignorantes) como património imaterial da humanidade.

Eu alegrei-me, sou alentejana, mas também me alegrei quando foi a vez do Douro, ou de Sintra, ou de Angra e, sobretudo, de Évora.

Neste tempo tão desclassificado que vivemos, como escreveu o Daniel Oliveira, “continua a ser a cultura, essa inutilidade, a dar-nos quase todas as boas noticias”.

Classificar (pela Unesco) ajuda a divulgar, preservar, manter vivo.

E não é que, no entrementes, encontrei um intelectual que tem dificuldade em compreender isto, e que se perturba tentando entender o entusiasmo geral?

Ora bolas pr’ó intelectual!

Todos estão no seu direito de ficarem indiferentes, ou até de estarem contra, mas vir, num dia como o de hoje, questionar o unanimismo da alegria do povoléu, é de quem precisa, à força toda, de se pôr em bicos de pés.

Dizem que o país precisa de todos. Talvez, mas a mim chateiam-me, pá!

quarta-feira, novembro 26, 2014

Declaração: sou de Évora e não acredito na Justiça portuguesa








 
 
 
 
 
 
 
 
 
Desde há muito, quaisquer duas linhas de escrita sobre José Sócrates começam obrigatoriamente por uma declaração: não gosto de José Sócrates!
Às vezes acrescenta-se-lhe outra: e nunca votei nele!

Não entendo, e não me lembro de o mesmo se passar com qualquer outro político em 40 anos de democracia.
Não conheço a pessoa em causa e não me sinto obrigada a declarações além da que dá título a este post.

Conheço apenas o político e, nessa condição, penso que José Sócrates tomou boas e más decisões, havendo uma grande diferença entre o seu primeiro e o seu segundo mandato.

Porém, também não me lembro de, em democracia, alguém sofrer tantos ataques políticos e pessoais, ou duma perseguição tão sistemática, tão bem orquestrada e tão bem dirigida.

Não foi cabala, não, foi política pura, dura e suja.

Claro que Sócrates cedo se pôs a jeito e tinha telhados de vidro.

O curso “mal” tirado e as “casas” assinadas na Beira são coisas próprias dum pequeno trafulha português; há-os aos montes, mas não se pode fazer parte da horda dos pequenos vigaristas se se quer ser primeiro-ministro.

Vaidoso, arrogante, teimoso e auto-suficiente, José Sócrates ousou bulir com os interesses instalados, a começar pelos juízes e magistrados; e isso paga-se muito caro por aqui.

Ouso dizer que, mais cedo ou mais tarde, pode pagar-se com a cadeia.

E ouso dizê-lo porque esse é o corolário lógico do sentimento que há muito me domina: enquanto quase todos se apressam a dizer que confiam na justiça, eu por acaso não confio. Mesmo nada!

Estou convencida de que, daqui por vários anos, quando tudo isto acabar, estarei como hoje − se me perguntarem se Sócrates é culpado ou inocente, embora eu possa ter alguma convicção minha, honestamente, só poderei responder: Não sei!

Porque não acredito na Justiça portuguesa até que ela me dê provas de que posso acreditar, deixando de ser essa coisa opaca, burocrática e discricionária que é hoje.

Aqui chegados, quero saudar todos os amigos de Sócrates, quer os que já o visitaram, quer os que o vierem a visitar na cadeia.

Sou alentejana, de Évora (olha a coincidência). No resto do país, não sei, mas lá no Alentejo diz-se que os verdadeiros amigos se conhecem na cadeia e no hospital. Touché.

E agora, venha o próximo escândalo. Depois de, em poucos meses, termos visto a queda do BES, a ruína da PT, o escândalo dos vistos gold, a prisão dum ex-primeiro-ministro, e de nos termos distraído dum Orçamento para 2015 que nos fará ainda mais pobres, começo a acreditar no Ulrich: o povo aguenta.

Abençoado povo que tudo aguenta.

 

 

segunda-feira, novembro 24, 2014

Kit de sobrevivência






















 

Na sua crónica no Ípsilon de 21 de Novembro, António Guerreiro escreve a dado passo:

“A crónica Vale a pena ler livros novos? (de José Pacheco Pereira no Público) colocava, sem desvios, a questão de saber se algum ganho pode advir de gastarmos tempo a ler as novidades (…), um tempo precioso que nos faz falta para lermos os valores seguros do património literário do passado. A questão é muito pertinente. Podemos tentar responder-lhe desta maneira: se queremos compreender a nossa época, temos de correr o risco de sermos intoxicados por ela.”

Eu continuo a querer compreender mas, por estes dias, estou tão intoxicada que, se não “abrir as portas e janelas” corro risco de me ficar na intoxicação.

Ontem resolvi, portanto, ir ao Centro de Arte Moderna da Gulbenkian ver a exposição “Animalia e Natureza na Colecção do CAM” . Encontrei arte contemporânea (sobretudo a partir da década de 1960) a que se adere facilmente, e um grande número de trabalhos que nos lavam os olhos e a alma; diante deles, diremos simplesmente –  bonito, muito bonito.
E isso não é coisa pouca.

Aproveito e informo, com agrado, que a exposição dura até Maio de 2015, e ao domingo de manhã não se paga.
É que os tempos de grande intoxicação parece que estão para durar, e todos precisaremos de um kit de sobrevivência.

Nota: na imagem, um pássaro bem vivaço de Ana Marchand que integra esta exposição.

segunda-feira, novembro 17, 2014

Empanturrados













 
 
 
Pedro Santos Guerreiro escreveu ontem à noite, no Expresso online, sobre a demissão do ministro Miguel Macedo.

Termina dizendo:

“O ministro é inocente e fez bem em demitir-se. Mas apenas abriu a porta da rua por onde mais algumas pessoas vão ter de passar. Andamos empanturrados com tantos escândalos. Mas não acostumados a eles.”

Eu, pelo contrário, acho que nos habituamos a tudo, e cada vez mais depressa.

Peter Kassig, de 26 anos e ex-soldado no Iraque, tinha-se convertido ao islamismo e fundou uma organização humanitária em 2012 - "Resposta e Assistência Especial de Emergência" para auxiliar as populações na guerra da Síria. Foi lá que foi sequestrado.

A notícia da sua decapitação pelo Estado Islâmico, na semana passada, parece já não ter incomodado ninguém por aqui, ou quase.

Empanturrados de informação e escândalos domésticos que estamos, a notícia da sua morte horrível já foi empurrada um pouco mais para baixo nas páginas dos jornais.

O Pedro Santos Guerreiro se calhar ainda não reparou que até à barbárie nos vamos acostumando.

Mais cabeça, menos cabeça…

terça-feira, novembro 11, 2014

Ide, ide pentear macacos












 
 
 
 
Estou fartinha de pagar para entrar em Lisboa, venha eu de onde vier.
Taxas sobre o turismo não me chocam.
O turismo não tem só vantagens, e há que reparar os danos.
Por essa Europa fora tudo é pago – até o inevitável xixi.

Mas, quando penso que os nossos filhos emigrados, chegando à Portela, vão ter que pagar uma taxa turistica, bom, aí fico mesmo enxofrada, e só me apetece dizer ao Costa que vá pentear macacos.

É o que estou fazendo, como se pode ver!

Imagem: Rumble Fish, Francis Ford Coppola, 1983

sexta-feira, outubro 31, 2014

Feminista, eu?




 
- A revista do Expresso de sábado passado trazia um artigo sobre a prática de excisão clitoriana, em meninas recém-nascidas, na Guiné-Bissau.
Como será viver uma vida inteira tendo sofrido excisão clitoriana?

 
- Em Portugal, este ano, aproximamo-nos das 30 mulheres mortas pelos maridos.
Como será viver no medo de ser agredida ou morta pelo homem com quem planeámos partilhar a vida?

 
- Tendo lido recentemente “O Livreiro de Cabul” é frequente lembrar-me de Leila, a jovem mulher que pensou em ser professora mas que, durante muito tempo, não se pôde candidatar porque não conseguia encontrar quem se dispusesse a acompanhá-la até ao ministério. Sozinha, segundo a lei islâmica no Afeganistão, não poderia caminhar pelas ruas da cidade.
Como será sentirmo-nos uma “coisa”?

 
- Há no Facebook uma página denominada My Stealthy Freedom que vou seguindo. Nela, mulheres iranianas denunciam a sua falta de liberdade, o medo de serem atacadas com ácido, por exemplo, e colocam também as suas fotos, sem lenço ou hijab, em furtivos momentos de liberdade carregados de contestação.
 
Como será viver com medo de ser atacada com ácido?
Como será nunca sentir o sol no corpo, a água do mar nos pés, o vento nos cabelos?

Parece que ser feminista está fora de moda, não é?
Então, pronto, não se fala mais nisso!

 

 

segunda-feira, outubro 27, 2014

Dormir com Poe












 
 
 
 
 
“Certa noite, ao voltar a casa, muito embriagado, de uma de minhas andanças pela cidade, tive a impressão de que o gato evitava a minha presença. Apanhei-o, e ele, assustado ante a minha violência, me feriu a mão, levemente, com os dentes. Uma fúria demoníaca apoderou-se, instantaneamente, de mim. Já não sabia mais o que estava fazendo. Dir-se-ia que, súbito, minha alma abandonara o corpo, e uma perversidade mais do que diabólica, causada pela genebra, fez vibrar todas as fibras de meu ser. Tirei do bolso um canivete, abri-o, agarrei o pobre animal pela garganta e, friamente, arranquei de sua órbita um dos olhos!”

Este é um pequeno excerto do conto “O Gato Preto” de Edgar Allan Poe que retirei daqui.

Lembrei-me dele, e doutros, quando no sábado li, na Revista do Expresso, uma entrevista com a filha mais velha de Paula Rego, Caroline Willing, em que ela afirma:

“A minha mãe lia-me livros de Edgar Allan Poe como histórias para dormir”.

Foi assim que, no meio duma inofensiva leitura de fim-de-semana, e subitamente, um frémito de horror e pasmo me percorreu o ser.

E interroguei-me:
 
Alguma vez te lembraste, Maria de Jesus, de pôr os putos a dormir com as histórias do velho Poe?
Nunca, nunquinha!
Porcaria de mãe que me saíste!

segunda-feira, outubro 20, 2014

Saída da caixa


















 
De vez em quando, é isto: saltas da caixa dos monos que nunca me decido a deitar fora.

Vagueias por aí uns dias e, no fim, antes de voltares para a caixa, a pergunta é sempre a mesma: o que me faltou conhecer de ti? A resposta também não varia: praticamente, tudo.

Foi uma amizade improvável, a nossa, tinha tudo para não chegar a ser e, contudo, durou anos.

Neles, estudámos juntas incontáveis horas, apresentámo-nos poemas de juventude, trocámos confidências de amores falhados e sucedidos, música, livros, frustrações e sucessos da juventude, sonhos e projectos, às vezes as lágrimas, às vezes as gargalhadas.

As tuas gargalhadas, tal como as recordo, nunca eram de pura alegria nem tinham a frescura límpida dos vinte anos. Vinham quase sempre acompanhadas de uma espécie de nostalgia, ou sarcasmo, ou dum olhar ora húmido ora embaraçado, como se tivesses nascido velha e carregasses o conhecimento duma longa vida já passada, porém tristonha ou mal cumprida.

Eras católica.
Se me perguntassem, diria que eras uma católica progressista quando eu era comunista. A política e a religião, porém, nunca nos aproximaram ou afastaram. Como se entre nós houvesse um acordo tácito, ou a percepção clara de que a discussão seria inútil, pois nem eu te faria comunista nem tu me farias católica. Éramos ambas “do contra”. E isso bastava.

A estranheza (mistério?) que, tantos anos depois, reconheço em ti, adensa-se quando lembro que falavas dum grande amor que, contudo, nunca conheci, nem tampouco vi – João, de sua graça.

Insinuavas clandestinidade no namoro, coisa de famílias, dizias, (Montecchios e Capuletos?) mas nunca houve o pormenor dum encontro, do onde ou do como, nunca um dia de inescapável felicidade no teu corpo, nunca a confidência de um beijo que, de tão urgente, se expôs a céu aberto ou, ao contrário, se consumou sôfrego e encapuçado num qualquer esconso da cidade triste.

Tinhas também, e até as nomeavas, muitas outras amigas, que eu também nunca conheci; em compensação, conheci quase toda a tua família.

Atacada de muitos achaques físicos, reais ou imaginários, ias ao médico num só ano mais vezes do que eu em vinte, mas, no meio de tudo, sempre te reconheci a força dos resistentes e uma disponibilidade amável para “o outro”.

Um dia falhaste um encontro comigo.
Estava tudo combinado, mas tu não vieste, e, curiosamente, nesse dia ninguém sabia de ti, ou sequer tinha conhecimento de que havíamos marcado um encontro. Nunca te justificaste.

Nasceu, nesse mesmo dia, o silêncio amargo e ressentido que viveu no meio de nós por mais de uma década.

Voltei a procurar-te, ainda no tempo em que se escreviam cartas e se colavam selos. E encontrei-te.
Também por carta, a minha amiga católica e “certinha” mentiu muito sobre números de telefone alterados e outras burocracias, mas parecia animada – sim, sim, sim, eu teria que ir à tua casa nova, dizias, onde contarias as muitas novidades que tinhas para contar.
Estavas feliz por eu te ter procurado, ó caramba, se estavas!

Quando chegou a hora de marcar o encontro… não mais te encontrei.
Nesse dia, não sei se alguém saberia onde estavas. Sei que não perguntei.
E agora, volta para dentro da caixa, anda!

 

sexta-feira, outubro 10, 2014

“A Instrumentalina”


 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
No último post, talvez eu tenha sido injusta com a escritora Lídia Jorge, talvez tenha sido injusta com os afectos dos outros, talvez tenha sido genericamente injusta.
Talvez tenha sido sombria também.

No Facebook, um amigo disse simplesmente – “eu gosto da Lídia” e, num comentário seguinte falou, breve mas sentidamente, dum conto dela chamado “A Instrumentalina”.

Fui ler. Encontrei-o por aí, em pdf, e gostei muito. Pensei, inclusive, que talvez a Lídia Jorge se devesse dedicar mais a essa difícil arte de escrever contos.

Deixo aqui “A Instrumentalina” como o encontrei, com um convite à leitura no fim-de-semana, e um agradecimento a quem mo apresentou e a quem o escreveu.

Com ele, saí um pouco da sombra de ontem para a luz de hoje.
E isso vale bem mais que uma moeda de ouro (quem ler perceberá).

A Instrumentalina